TRAVESTIS E A REGULAMENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO

Prostituição não é nem nunca foi crime no Brasil, mas é como se desde sempre o fosse. Isso porque a rede de serviços que gira ao seu redor é toda criminalizada, fazendo com que na prática ela acabe por sê-lo, mesmo tendo sido, em 2002, reconhecida como profissão pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Prostituir-se no imóvel próprio não traz maiores inconvenientes a ninguém, mas fazê-lo no imóvel alheio pode levar essa outra pessoa, ainda que não receba nada com isso, a ser acusada de cafetinagem ou favorecimento de prostituição. Com isso já vemos o modelo de prostituição que estaria ao abrigo do Código Penal, aquele em que a pessoa tem plenas condições de adquirir o próprio imóvel antes de começar a exercer a atividade. Com isso vemos também a razão de qualquer travesti ou mulher trans ter dificuldades quase insuperáveis em alugar um imóvel: dado o estigma que paira sobre a categoria, “tudo puta”, não há pessoa em sã consciência que queira correr o risco de ver-se associada a isso. Pior: o simples fato de morarem juntas pessoas que se prostituem, ainda que não o façam nas dependências daquela residência, faz com que ela possa ser enquadrada no quesito “casa de prostituição”… mas onde então viverão travestis e mulheres trans quando, segundo dados da ANTRA, 90% delas se prostitui (e no imaginário social todas)? Como poderiam senão viver num lugar que fosse passível de ser criminalizado pela lei a qualquer momento, o tempo todo extorquido pela polícia corrupta?

Regulamentar as casas onde se exerce a atividade, eis uma das novidades do Projeto de Lei Gabriela Leite. As casas sim, porque quem de nós teria, já de cara ou mesmo em qualquer momento de nossas vidas, condições de adquirir um imóvel onde exercer a atividade? Alguém precisa possuir essa casa e cuidar de sua manutenção, contas, limpeza, troca de toalhas e roupa de cama, segurança, decoração, divulgação. Quanto isso custa? Depende. Segundo o PL Gabriela Leite, a pessoa proprietária pode ficar com no máximo 50% doq a prostituta recebe em cada programa realizado no interior da casa. Mas criminalizar a cafetinagem a priori, sem querer primeiro avaliar as condições de trabalho existentes no interior daquela casa, é no fim das contas condenar prostitutas a trabalharem sempre para uma pessoa criminosa, pagando o preço dessa ousadia, ou, então, a terem que fazer a rua, um espaço que sabe ser muito hostil com a trabalhadora do sexo e que sabe obrigá-la a pagar alguém para que ela possa exercer sua atividade com um mínimo de paz (em geral a polícia). Regulamentar as casas é oferecer opções para a pessoa que se prostitui, é também permitir que nós, pessoas trans e travestis, tenhamos acesso ao aluguel de imóveis, é também permitir que o trabalho sexual possa ser realizado em qualquer tipo de espaço, inclusive o alugado em imobiliárias: afinal, por que razão ele deveria estar segregado apenas aos becos escuros, quartos pulguentos, drive-ins, motéis?

Aliás, não se pode lucrar com a prostituição alheia, nem favorecê-la, mas isso não se aplica a motéis, nem a sites de anúncio ou classificados de jornais. Só que se eu emprestar dinheiro para uma amiga ir se prostituir na Europa ou noutro canto qualquer do Brasil, estarei correndo o risco de ser enquadrada sob o crime de favorecimento da prostituição ou até de tráfico de pessoas. Agora, se prostituição não é crime, por que razão o favorecimento disso o seria? Hipocrisia, oras, e demonização da cafetinagem. Só quem é travesti ou mulher trans prostituta pra entender a razão de chamarmos cafetinas de “mãe”: demoniza-se a cafetina, mas não a família que nos expulsa de casa adolescentes, a escola que não se compromete com nosso acesso e permanência, o mercado formal de trabalho que fecha suas portas para nós, os hospitais que estão se cagando pras nossas demandas. A ideia de família que temos em mente não é, nem nunca foi, a dos comerciais Doriana.

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