“Destino Amargo”, Amara Moira: eis o que és, eis o que significa. Um nome, o meu nome. Mas ninguém o diz. Sonoro, alegre talvez, como a cara que faço ao receber proposta de um completo por vinte, oral por dez ou menos. Atender na rua é isso o que dá, é isso o que escuto. Travesti rondando os trinta mas dizendo vinte, militante LGBT, escritora, doutoranda em teoria literária pela Unicamp nas horas vagas: e puta. “E puta” mas como?! Mas por quê!? Sem “mas”. Puta porque puta, puta porque quem sabe um dia. Já viu travesti professora, advogada, cientista, médica, astronauta? Acham que serei a primeira, acham que um canudo de doutora vai me abrir as portas do mundo, pioneira: “venha, Amarinha, trabalhar conosco, te queremos tanto”! E o telemarketing, salão de beleza? Antes puta. Prefiro isso a ouvir desaforo no telefone oito horas por dia ou fazer unha e cabelo de madame com rei na barriga.
Tantos anos retardando a transição, no armário toda toda, temendo até mesmo pôr pra fora a pontinha dos pés. Medo de quê? De tudo. Mas sobretudo de ter que do nada me prostituir, ter que ir da noite pro dia buscar cada centavo do meu sustento na prostituição. E não eram os corpos sem nome, vários, variados, via de regra fora do padrão, em diversos graus de higiene e saúde, o que me assustava. Com esses eu me viro bem, e até prefiro, anônimos, fora do padrão (como eu própria me sentia sempre, ainda mais agora): sexo nunca foi duro, nunca foi foda, mesmo as modalidades mais excêntricas… difícil era transar por amor, amar por prazer. Meu medo era, antes, a violência da exclusão, me ver pária duma hora pra outra, ser tratada feito lixo, perder família, amigos, círculo social, não ter um teto, o direito de continuar estudando, de poder buscar emprego que não fosse esses que não consideram emprego: puta.
Mas lá estou eu, um ano e algo atrás, travesti. Sabe-se lá o que me deu, de onde veio a coragem, uns mesisinhos de hormônio, corpo nem lá nem cá, meio a meio, solidão corroendo por dentro, eu ardendo por um toque íntimo, um “como você tá linda”, “você mexe comigo” e nada. Travadérrima, medo de deixar qualquer um se aproximar de mim, mas, quando visitava as amigas na batalha, não tinha jeito, uma chuva de quanto você cobra, quero você, seu corpo, só diga o preço. As mais vividas, na batalha todas, começam a me atiçar pra fazer a rua, ganhar um akué, meu dindim. O convite tinha também um quê de “você não vai ficar só turista, né?”, mas isso eu que intuí. Começa a me devorar a ideia do “e se eu fosse?”, vontade de peitar o estigma, esse fantasma que me afastou tanto tempo da liberdade que eu hoje vivia. Não, não deixaria mais o medo me privar de descobrir quem eu era, e agora eu estava disposta a pagar o preço da descoberta.
Dois níveis de foda-se, então: não só me fazer puta como também assumi-lo pra quem quer que seja, gritar minha condição, escrever sobre a experiência da rua duma perspectiva literária ao mesmo tempo que feminista, explicitando as violências que vive quem vende o acesso ao próprio corpo (e, coisa que fui descobrindo, quanto menos se cobra, quanto menos se pode cobrar, mais esse cliente se acha dono do nosso corpo, livre pra fazer o que bem entenda — por isso a importância de nos empoderarmos).
O começo, ah, o começo. Primeiro dia na rua, carros e carros passando, sem coragem de olhar o cliente nos olhos, sem saber como flertar com ele, atiçar seu desejo, fazê-lo pagar pra transar comigo. Penei. Cinco horas de pé no salto, frio que eu não sabia que existia em Campinas, um único interessado parou, nariz sangrando de tanto pó, queria um completo no carro por vinte! Fazia um ano que eu não transava, virgem praticamente, sem traquejo, não sabia por onde começar. “Não, não faço por menos de trinta!” (dez reais, grande diferença). Voltei em brancas nuvens, chorei, achei que não daria conta, que não servia pra puta, ai… mas me dei outra chance e dessa eu conto a próxima vez. Aguardem.
[post encomendado por Lola Benvenutti para seu blog:
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