E SE EU FOSSE PUTA: POLISSEMIAS DO ESTUPRO

Tempos atrás percebi, diante da indignação estrondosa de amigas cis, que pessoas portadoras de pinto original de fábrica costumam usar a palavra estupro de maneira, pra dizer o mínimo, leviana. Eis a cena: um cis pauzudo havia me comido a noite anterior todinha e cheguei sorrisão nos lábios dizendo, pra deleite da comunidade portadora de pinto, que ele tinha ‘me estuprado gostoso’. Enquanto metade dxs presentes riam imaginando a cena, as cis presentes, em simultâneo, fecharam a cara e começaram a demonstrar às claras revolta frente a essa festa toda: “como assim ‘estupro’, vc acha isso brincadeira, acha isso ‘gostoso’?” A princípio pareceu exagero da parte delas, querer negar a polissemia óbvia dessa palavra, mas depois vim a perceber o qto esse uso de estupro pode trabalhar a favor da relativização do ato propriamente dito, o qto isso pode colaborar com a cultura do estupro que ameaça diariamente não só as cis (hétero e lésbicas), como também os homens trans, as mulheres trans e mesmo os cis gays / afeminados (sendo que, apesar de algumas dessas pessoas portadoras de pinto estarem sim sob ameaça constante de estupro — pense p.ex. nas situações que envolvam prostitutas travestis e transexuais, ou msm qdo estas são enquadradas pela polícia, ou msm na vivência cotidiana de travestis e mulheres trans [especialmente qdo apresentem passabilidade cis, oq nesse contexto se torna potencialmente perigoso], ou msm no ambiente escolar em que meninos abusam de crianças consideradas homossexuais, ou msm na própria situação das cadeias –, ainda assim muitas delas, essas próprias pessoas que podem ter sido ou vir a ser vítimas de abuso e msm de estupro, usam a palavra tranquilamente).

Um amigo me sugeriu que talvez se devesse à cumplicidade existente entre essxs todxs que detêm o falo, oq levaria essas pessoas que tb são vítimas de estupro a viverem essa ameaça, assim como a própria experiência da violação, de maneira menos traumática (penso nos trocentos casos de travestis que passaram por experiências sexuais algo forçadas, de consentimento quando menos dúbio, lá por volta dos seus dez anos se tanto, sem que isso redundasse em trauma). Se estupro fosse só oq vivi nas mãos daquele cis pauzudo, ou se esse uso da palavra colaborasse para que estupro virasse só aquilo que vivi (e não oq se configura como o crime passível de punição), aí eu entenderia a reação delas como exagero… mas não é assim que funciona e, dsd q me dei conta disso, tenho procurado problematizar sempre que possível essa questão, ainda sem saber direito o caminho que se deve tomar (proibição do uso leviano, indiferença frente a ele?).

Afinal, oq significa ‘estupro’ em ‘ele me estuprou gostoso’? ‘Estupro’ aí é hipérbole / metáfora doq? Pegada forte, sexo vigoroso, o prazer em se submeter ao prazer alheio (algo parecido, no BDSM, às experiências de imobilização), o prazer da dor, o prazer de inverter o jogo da objetificação (‘me ensinam a temer o estupro 24h/dia, então vem cá, me estupra porque eu quero, porque quem manda sou EU, deixa eu brincar um pouquinho com esse medo, ao menos na minha intimidade’)… oq diabos ‘ele me estuprou gostoso’ quer dizer, diz? E, mais doq isso, deve-se continuar a fazer um tal uso da palavra?

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