A PROSTITUIÇÃO E O AMOR LIVRE

Quem me pediu em namoro desde que comecei na prostituição, um ano e pouco atrás? Clientes, inúmeros, a começar do primeiro, e de lá pra cá perdi as contas quantos. Fora eles, ninguém mais o fez, o que é também sintomático, significativo. Mas querer namorar travesti e, ainda por cima, puta… o que esses caras têm na cabeça? Alguns chegam dizendo que querem me tirar “dessa vida”, eu exclusiva deles, “te assumo pra família e tudo”, “pago suas contas”, se excitam com esse discurso de salvação, até que acabam gozando e, daí por diante, esquecem tudo o que prometeram, todo esse amor. Outros já chegam sem essa fantasiice toda, mais pés-no-chão, realistas, oportunistas ouso dizer, “deixo você continuar trabalhando” (“deixo”, vejam bem, que bonzinhos!), “quero só seu amor, carinho, quando eu vier te ver” (vulgo “quando estiver com tesão”, ele), o velho papinho pra conseguir transa de graça, sem compromisso.

Não é fácil ser travesti em ponto algum, mas talvez ainda mais no amor e ainda ainda mais se você só gostar de homem cis (a heteronormatividade, à sua maneira, também reina entre nós). Por sorte sou bi e, nesse meio tempo, me envolvi com mulheres também, cis e trans, lés e bis, todas da militância ou próximas da militância, pessoas que me levaram muito mais a sério, andaram de mãos dadas comigo, demonstrações sinceras, públicas de afeto, se permitindo o envolvimento para além dos quartos do motel, para além da euforia do sexo. Mas, mesmo para essas mulheres, por mais empoderadas e decididas que fossem, por mais desconstruídas (taí algo fundamental para poder gostar de nós, “desconstruir-se”, o que diz muito da nossa condição), eu ser prostituta sempre foi algo que pesou. Algumas não quiseram mais tocar no assunto, parando inclusive de acompanhar meu blog (pelo mal-estar que a partir dali começaram a sentir lendo os relatos), blog que antes admiravam, outras me cobravam de maneira ora sutil, ora mais incisiva, resposta para “por que eu continuo, já que não preciso?”, todas por dentro se questionando o quanto dariam conta de se manter nessa relação comigo ou até quando.

Ser travesti já nos torna tabu, daí a maioria ainda encontra na prostituição a única forma de subsistência (e sabemos que seremos consideradas putas mesmo as poucas de nós que escaparem à compulsoriedade do trabalho sexual)… não é fácil querer encarar esse combo ao nosso lado e, mesmo quando se queira, não é fácil ter estrutura emocional pra lidar com tanta pressão. O olhar público, a família, o círculo social, às vezes até o trabalho pode estar em jogo, e só por estarem com a gente! A transfobia nos exclui, a prostituição nos abraça e a putafobia amplifica a exclusão a que já estamos sujeitas meramente por existir. E aí, o que acontece? Lembro de uma travesti com quem namorei uma década atrás, eu nos idos dos meus dezoito anos, no Shopping, a mão dela escapulindo da minha porque estávamos em público, mesmo eu caçando a mão dela. Se preocupava comigo, tinha medo do que podia me acontecer, mesmo eu querendo enfrentar a barra. Hoje sou eu quem me vejo do outro lado, tendo que decidir se deixo ou não a pessoa com quem me relaciono pegar na minha mão em público, me dar carinho, me apresentar pra família. Não há escolhas fáceis nesse meio.

No meio de tudo isso, como ficamos nós, nossos sentimentos? Criadas numa sociedade que prega a monogamia, a conciliação entre amor e sexo, mas, ao mesmo tempo, compulsoriamente lançadas à prostituição mais precária, a do vintão, vários clientes por dia, programas de dez minutos, tempo suficiente pra ouvir declaração de amor e, em seguida, pós gozo, ainda ver a cara de nojo do até então cliente apaixonado, apaixonante. Boa parte delas acaba desenvolvendo aversão a sexo, mesmo com as pessoas de quem gostem, mas ainda assim terão que continuar performando o ato sexual dentro da relação, para não “perder” essa pessoa que teve a coragem de querer, ainda que às ocultas, se relacionar com ela. Díficil lidar com essa montanha russa de sensações, medos, angústias, com essa irresponsabilidade toda para com nosso emocional. Por conta do estigma, nos sujeitamos, jogamos as regras do jogo, fazemos romance pra ganhar um extra, até dormimos de conchinha pagando bem, mas sempre o gosto amargo no final da noite, porque no meio dessa leva de corpos que conhecemos dia após dia a expectativa ainda é a de encontrar o príncipe encantado que nos aceite, nos assuma e, se possível, nos ame. 

Fico me perguntando se haveria amor livre para nós travestis, em especial as 90% que estão no combo “travesti” + “prostituta”. Não quero nem de longe chamar essa prostituição que há para nós, precária, de “amor livre”, nem esses pedidos todos de namoro de clientes que só se permitem nos amar na cama do motel, chapados de tesão. Longe de mim. Mas penso, isso sim, em construirmos redes de afeto, redes com pessoas que nos tratem como gente, um amor militante, construído, desconstruído, que nos ajude a cultivar o desapego, a combater a ideia de amor como posse, exclusividade, de conciliação entre amor e sexo (imagina a violência disso, ver-se prostituta e ainda assim acreditar que amor e sexo devem andar juntos?), a problematizar essas expectativas românticas que só nos violentam, que só nos deixam reféns nas mãos de gente que não merece nosso amor, nosso tesão, nossas lágrimas. Talvez isso nos fortalecesse para enfrentar os joguinhos a que esses mesmos irresponsáveis nos submetem cotidianamente, já que teremos de enfrentá-los de qualquer forma. Talvez isso nos permitisse mais autonomia para nos impormos melhor numa relação com quem quer que fosse.

Teria o amor livre algo a nos oferecer, nesse sentido?

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